O porquê das coisas, na Turquia

Mustafa Kemal Atatürk foi o fundador da República da Turquia, e o seu primeiro Presidente, após ter liderado os Turcos na guerra pela sua independência em 1923 contra os aliados (França, Reino Unido, Itália, Grécia, Arménia, Índia, Georgia). Guerra essa que se sucedeu à queda do Império Otomano depois da Iª Guerra Mundial, e que mostrou a força do exército de Atatürk. Com 100.000 homens derrotou os aliados com 500.000.

Nessa altura, Atatürk colocou em prática uma estratégia de recuperação da Turquia, iniciando um programa de reformas políticas, económicas e culturais com o objectivo de transformar os pedaços do Império Otomano num Estado moderno e Europeu. A sua política baseava-se em seis pilares fundamentais. A saber: o Republicanismo, o Populismo, o Secularismo, o Revolucionismo, o Nacionalismo, o Estatismo.

O Republicanismo pretendia substituir o absolutismo da Monarquia por uma República Constitucional, onde os representantes do povo seriam eleitos. Um Estado livre, regido pela lei e pela soberania popular. O Populismo significava que Atatürk queria um Estado que estivesse ao lado do povo, mas não contra as elites. Aliás seriam estas a liderar a revolução tendo em conta o interesse geral.

O Secularismo pretendia que o Estado fosse laico, que não estivesse sujeito a nenhuma ordem religiosa. Que não houvesse qualquer interferência da religião na governação do país, e vice-versa. O Revolucionismo pretendia que a Turquia substituísse os seus conceitos e instituições tradicionais (Otomanos) por outros modernos, defendendo a necessidade de uma mudança social como estratégia para alcançar uma sociedade moderna.

O Nacionalismo pretendia que a Turquia fosse um e um só Estado, sem divisões no território ou no povo. Atatürk cultivou o ideal da nação e do povo Turco, uma nação e um povo unos. O Estatismo obedecia à ideia de Atatürk de que a Turquia só se poderia modernizar apoiada no desenvolvimento económico e tecnológico, e por isso o Estado deveria regular a actividade económica e investir em áreas em que os privados não prosperassem.

Com Atatürk a Turquia conseguiu reerguer-se e transformou-se num país moderno e desenvolvido. Criou um povo forte e que ainda nos tempos de hoje o demonstra – como mostrou na recuperação da maior depressão económica da sua história há cerca de 15 anos atrás. A Turquia é hoje um dos principais produtores mundiais de produtos agrícolas, têxteis, automóveis, navios, materiais de construção, eletrodomésticos e electrónica de consumo.

Atatürk (que significa “pai dos turcos”) é assim um herói nacional, amado por todo o povo turco. Um povo que entre 1920 e 2010 cresceu de 14.000.000 para 75.000.000. Os turcos respeitam e estão satisfeitos com o que Atatürk construiu e lhes ofereceu. Um país forte e rico com influência não só no Oriente mas também no Ocidente. Que se tinha mantido estável e pacífico até à chegada do AKP – Partido da Justiça e do Desenvolvimento.

Em 2003 o AKP, partido liderado por Erdoğan, venceu as eleições legislativas e iniciou um lento processo de colonização de lugares chave na administração central e principalmente na justiça. Em 2007, venceu com maioria e desde então muitos acontecimentos vêm perturbando a paz social. Desde a escolha de Abdullah Gül para presidente (envolvido em partidos Islâmicos) até à tentativa de levantar a proibição do uso do véu islâmico nas universidades.

Nos últimos tempos, de uma forma mais evidente, o Governo de Erdoğan tem vindo a tentar transformar um país secular e moderno numa república islâmica à imagem do Irão, Paquistão ou Afeganistão. E isso está bem visível na construção de várias Mesquitas islâmicas nas principais cidades do país e na tentativa de destruir tudo o que Atatürk construiu, bem como o seu legado e a sua imagem.

O Governo liderado por Erdoğan chegou mesmo a, nos últimos tempos, destruir edifícios históricos construídos por Atatürk, mudar a nomeação de locais (escolas ou hospitais) que tinham Atatürk no nome (passando-os mesmo para o nome da sua própria mãe), arrasar museus em memória de Atatürk e, pasme-se, chegou ao ridículo de acabar com feriados como o dia da criança ou da juventude, instituídos por Atatürk.

O que se passou nestes últimos dias começou com o que parece ser uma “simples” destruição de um parque arbóreo para a construção de mais um centro comercial. Alguns turcos manifestaram-se para o impedir, e a polícia carregou. Mas nada disto é “inofensivo”. Há motivos políticos, ideológicos e religiosos por detrás desta decisão de Erdoğan e da revolta do povo turco, que entretanto se juntou aos milhões num movimento revoltoso.

Aquele parque que Erdoğan quer destruír foi um quartel militar que albergava militares islâmicos no século XIX, e foi daí que nasceu um movimento desses militares que percorreu Istambul a assassinar militares não islâmicos. Atatürk, na altura oficial militar, trouxe de Salónica (na altura a Grécia era parte do Império Otomano) o seu exército, prendeu os militares islâmicos, destruiu o quartel e mandou plantar árvores no local.

Trata-se portanto de algo simbólico. Erdoğan quer continuar a destruir o legado de Atatürk e o povo Turco finalmente disse basta! É por isso que uma “simples” manifestação que mais parecia um protesto ambiental se transformou numa revolta do povo contra o Governo e contra o regime. Enquanto o país se revolta e nas redes sociais se relata o que acontece nas cidades da Turquia, a TV Turca (controlada por Erdoğan) mostra documentários da vida animal e históricos (sobre Hitler, pasme-se!) ou mesmo concursos de misses.

A Turquia como exemplo?

Há cerca de 15 anos atrás a Turquia passou pela maior depressão económica da sua história. A crise económica e financeira destruiu o país. Passada década e meia, a imagem de uma Turquia falida foi substituída por um exemplo de estabilidade política e económica. De uma país desenvolvido com uma das economias mais fortes e em mais desenvolvimento do mundo.

A Turquia é hoje um dos principais produtores mundiais de produtos agrícolas, têxteis, automóveis, navios, materiais de construção, eletrodomésticos e electrónica de consumo. O sector privado tem cada vez mais peso na economia, apesar do Estado ainda ter o controlo de parte da indústria, banca, transportes e comunicações.

A maioria dos cidadãos turcos ainda se lembram de bancos falidos, empresas fechadas, milhões de desempregados, e do país a ser obrigado a vergar-se ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Depois disso, mais empresas foram à falência, mais pessoas ficaram desempregadas e houve manifestações nas ruas. O país passava por uma situação muito difícil.

Durante a crise financeira o sector bancário esteve no centro da crise. Muitos bancos foram absorvidos pelo Estado e alguns banqueiros foram presos. Mas aparentemente a crise fez bem ao sector. Levou à execução de reformas, a fecho de bancos cujo funcionamento era pouco claro, e a tomadas de decisão essenciais para enfrentar problemas económicos.

A crise foi um marco para a Turquia, pois levou a reformas radicais em todos os sectores da sociedade e do Estado. Mas isso só foi possível sobre a tutela de partido único, depois de as mais variadas coligações terem falhado no Governo e na recuperação do país. O partido único foi a garantida de estabilidade política e económica.

Mas a verdade é que a recuperação só veio depois de o programa de assistência (de 3 anos) proposto pelo FMI ter falhado. Os bancos eram como agiotas, o Governo não conseguia fazer as reformas necessárias, e não ouvia os empresários. Alguns dizem que a maior falha foram as políticas paternalistas do FMI e o facto de o Ministro das Finanças ser um “agente” seu.

No fim de contas, a Turquia reergueu-se sozinha. O povo turco meteu mãos à obra, fez sacrifícios, e lutou pelo seu futuro. Em menos de duas décadas conseguiu transformar o país. Em Dezembro passado Pedro Passos Coelho visitou a Turquia e disse que a deveriamos tomar como exemplo. Será que se referia a isto?