Se mais provas eram precisas, o filme-documentário da Netflix – Athlete A – de 2020, deveria ter accionado todos os alarmes em todas as organizações desportivas, profissionais e amadoras.
Jornalistas e atletas/vítimas expuseram a cultura tóxica impregnada na Federação Americana de Ginástica, e os abusos sexuais cometidos, principalmente pelo renomado médico Larry Nassar (entretanto condenado a décadas de prisão por agredir sexualmente ginastas).
Como é apanágio dos dias em que vivemos, o “grito” daquelas atletas foi aproveitado para mais uma daquelas indignações nas redes sociais, e aqueles activismos de sofá, que apenas têm o mérito de avançar certas agendas escondidas ou carreiras políticas, para depois cair em saco rôto.
E agora deparamo-nos com mais um caso vergonhoso, do beijo de Rubiales (Presidente da Real Federação Espanhola de Futebol) a uma das jogadoras da selecção campeã do mundo (Jenni Hermoso) – que teve o infeliz mérito de apagar completamente o feito incível daquelas atletas.
Todas as pessoas de bem pensarão: “Gritos como os da ‘Atleta A’ exigiam que responsáveis tivessem tomado atitudes decididas e fortes, para evitar que algo semelhante voltasse a acontecer, mas continua tudo na mesma!”
O que essas pessoas não entendem é que os responsáveis não são os que estão no poder ou nos lugares de decisão. Aliás, como se vê com frequência, esses são os infractores! E a verdade é que as pessoas nessas posições raramente querem agitar as águas, preferindo deixar passar a tempestade (leia-se, a indignação) e manter o statu quo que os elegeu ou nomeou – elas são parte do sistema.
As pessoas têm que se mentalizar que os responsáveis somos todos nós! Somos nós que temos, no dia-a-dia, de nos preocupar com a maneira como os nossos filhos e filhas são tratadas nas escolas, nas actividades de tempos livres, nos clubes onde praticam desporto (futebol, basquete, voleibol, natação , ginástica, etc.) ou noutra qualquer actividade onde estão à guarda, e em contacto, com outros.
Somos nós que temos, no dia-a-dia, de nos interessar e prestar atenção a como as organizações e instituições da nossa comunidade local são geridas. Somos nós que temos, no dia-a-dia, de monitorizar os comportamentos daqueles que estão à frente delas. E usar os nossos direitos e deveres para que tudo seja regular, legal, ético, e moral.
Aquele tipo de comportamentos não nasce quando os infractores chegam ao topo, a organizações de nível nacional ou internacional. Nasce muito antes, no início da carreira de “dirigentes”, a nível local e regional. E vão-se enraizando, alimentados pelo nosso silêncio, conivência, desinteresse, e negligência.
Como disse o Papa Franciso no seu famoso discurso… Todos, todos, todos temos a responsabilidade de mudar as coisas. Está provado há muito tempo que nada muda “por cima” – por vontade das Cúpulas. A mudança começa sempre “por baixo” – por vontade das pessoas.
O problema está em observarmos desvios ou infrações e não dizermos nada. Acharmos que as nossas acções individuais não vão mudar o mundo. Mas a verdade é que é precisamente a soma dessas acções o rastilho e o caminho para as mudanças que se impõem.
Precisamos de falar quando vemos ou pressentimos que algo não está bem. Temos de deixar de ter medo de quem tem poder ou dinheiro. Temos de tomar as nossas responsabilidades cívica e social a sério. Exige-se que o façamos, quanto mais não seja, para proteger os nossos filhos e as nossas filhas.
Em conclusão, o que se espera de mais um escândalo de abuso sexual não é apenas a demissão do infractor (se bem que se exige que aconteça), ou a viralização de uma hashtag nas redes sociais (se bem que ajuda a despertar consciências).
O que se espera e deseja é que todos nós comecemos imediatamente, a nível local, na nossa comunidade, a agir em conformidade.
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